Para mim, ou para você.

Quando for ler, não procure culpados. Eu apenas escrevi como quem fala de si após anos de silêncio. A dor é pulsante, mas o respeito também.

Natali Carvalho
3 min readMar 9, 2022
Foi aqui que nos tornamos nós.

Tenho evitado pensar neste texto há uns dois meses. Sei o que ele representaria para mim, para nós, quer dizer, para o que fomos. Meus amores costumam ser longos, por isso mesmo, superá-los também leva tempo. Neste caso a dor é ainda pior, pois aprendi mais contigo do que com qualquer outro, consequentemente me tornei outra quando me deixou, dizendo para não chorar, enquanto contemplava cada parte do meu quarto.

Por isso, seguindo o seu abandono, também fui embora. Não suportaria continuar no vazio deixado por você. Confiante, acreditava que você não viria junto, mas acabou vindo na mudança. Eu melhorei na segunda semana, foi quase como se nunca tivesse amado. Eu fugia de cada lágrima que gritava seu nome, contemplando o absurdo.

Foi um misto de azul-cinza quando eu percebi que você não estaria mais na minha vida. Embaralhada naquilo que sentia, como nas cartas que nos divertíamos sozinhos, sabendo que ambos éramos vencedores por termos o amor do outro. Faz duas semanas. Duas semanas que finalmente tive coragem de tirar suas fotos da minha vista, no novo quarto. A procura da sua família para me ter de volta, enquanto você seguia feliz sem mim, foi uma dor que não queria ter vivenciado, preferia que todos tivessem me esquecido.

Não posso ouvir samba. Não aguento os domingos.

Desenvolvi o medo de te encontrar na rua. E prometi para mim não amar novamente — como fazem todos aqueles que perderam os que achavam ser o amor da vida — mas também pudera! Como eu pude acreditar no sempre de quem na boca só tinha passagem? Te defendi religiosamente todas às vezes que pude, assumi toda a culpa do erro que eu nunca tive o direito de saber qual foi, pois ele veio fantasiado de liberdade.

Voltei a chorar. Quem diria que isso aconteceria já no ponto três? Não sei se foi a dor de te ver seguindo ou a solidão que não pediu licença quando fincou a cerca. Como disse o músico, eu não digo mais o que já sei, porque penso ser mentira. Sonho acordada então com o adeus geográfico, meu, seu, nosso, distante.

“A dor é minha, eu me aguento, pode crer”

Mas ai ouvi a história da boca de Oxalá sobre o amor. Quando um homem em pleno seus setenta anos decidiu marcar na pele desenhos e frases desconexas. Suas filhas e sobrinhas o indagaram sobre significados. Ele no entanto, só confessou a Oxalá. Sua esposa estava com Alzheimer, e sua saída foi marcar o amor para não esquecer também. Isso me fez questionar: talvez, daqui dez anos nós dois possamos contar uma história assim, sobre nós. Talvez o reencontro e o destino façam seu trabalho e nos reúna.

“A memória é uma costureira e, não bastasse isso, das cheias de capricho. A Memória conduz sua agulha para fora e para dentro, para cima e para baixo, para cá e para lá. Não sabemos o que vem em seguida e nem o que virá depois. Assim, o ato mais corriqueiro do mundo, como sentar-se a uma mesa e puxar para perto o suporte com o tinteiro e a pena, pode agitar milhares de fragmentos discrepantes, desconectados, ora acesos, ora apagados, subindo e flutuando e descendo e oscilando”.

Ri. Nós nunca mais vamos nos reencontrar. Mas no meu autoconsolo, jurei a todos os Orixás que saberia responder à pergunta chave do afeto, quando esses dez anos chegarem: afinal o que valeu? Ainda fico atando os pontos em meu silêncio sobre tu, que eu prometi, sabe-se Deus a quem, para não riscar a tua imagem para ninguém. E nesse silêncio me afoguei.

Só hoje percebi que no fim, te protegi, até mesmo quando você me abandonou. Todos os sims constantes que te dei para que não me abandonasse, lutando para ser amada, me trouxeram aqui. Foi esse sentimento de devoção fantasiado de cuidado que me empurrou, novamente. Graças a isso, tenho que me reconstruir sozinha, com o gosto amargo de uma não-maldição que acabei jogando em mim ao invés de você.

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